Matheus Falivene | ConJur – Limites da legítima defesa nas ações de segurança pública
Os recentes casos envolvendo o confronto entre agentes de segurança e criminosos, ou mesmo casos em que cidadãos comuns foram mortos em ações policiais, reacendem o debate sobre quais são os limites da legítima defesa nas atividades de segurança pública, sejam elas exercidas por policiais ou por membros das Forças Armadas em ações de garantia da lei e da ordem.
No vocabulário militar, as regras de engajamento são as normas que definem em que circunstâncias e condições e por quais meios e de qual forma o membro de uma organização militar ou policial pode fazer uso de força letal. São as regras que determinam se e como um agente de segurança pode matar um eventual agressor.
No âmbito das operações de paz da ONU, as regras de engajamento são definidas pelo Capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, que dispõe de forma genérica sobre as operações de intervenção e de manutenção da paz, pelo manual ROE MC 362-1 e pelo Sanremo Rules of Engagement Handbook, dois compilados de normas, diretrizes e procedimentos a serem tomados pelos membros das forças de paz.
Porém, no âmbito das operações internas, realizadas no Brasil pelas forças policiais ou pelas Forças Armadas, o limite das regras de engajamento está na disciplina da legítima defesa, contida na norma do artigo 25 do Código Penal.
Pela atual redação, os policiais e membros das Forças Armadas — assim como qualquer cidadão — somente estariam amparados pela excludente da legítima defesa se utilizassem moderadamente os meios necessários para repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, à guarnição ou a terceiros.
Com isso, são requisitos da legítima defesa a existência de injusta agressão, que é a agressão contrária ao direito, atual, que ocorre naquele momento, ou iminente, que está prestes a ocorrer, e que ela se dê contra direito próprio de quem atua na defesa ou de terceiros.
No mais, os meios empregados pela legítima defesa devem ser aqueles necessários para tão-somente repelir a injusta agressão, devendo guardar com ela estrita proporção, não podendo se constituir numa agressão em si. Além disso, esses meios necessários devem ser empregados de forma proporcional, não podendo ser utilizados de maneira exagerada ou após repelida a injusta agressão.
Dessa forma, somente estaria em legítima defesa se, por exemplo, matasse um indivíduo que dispara contra os agentes, mas não estaria em casos em que o indivíduo apenas empreende fuga, sem gerar um risco imediato.
É certo que a complexidade das operações de segurança pública e a fragilidade da disposição sobre a legítima defesa no Código Penal fazem com que surjam diversas dúvidas, como, por exemplo, se estaria amparado pela legítima defesa o policial que, vendo um criminoso armado com um fuzil, o matasse.
Existe grande discussão na doutrina e na jurisprudência se o fato de o indivíduo portar um fuzil, por si só, constituiria ou não uma grave ameaça capaz de ensejar a atuação (em legítima defesa de terceiros) do agente de segurança.
Numa tentativa de solucionar esse problema, o “projeto de lei anticrime”, apresentando pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, propõe modificar profundamente o instituto da legítima defesa, adicionando o parágrafo único que dispõe que se considera em legítima defesa “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem” (inciso I) e “o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes” (inciso II).
Enquanto o inciso II apenas trata de uma questão específica, que já configura a excludente da ilicitude na atual redação, o inciso I traz hipótese de legítima defesa nova, uma espécie de “legítima defesa antecipada para agentes de segurança”, onde não seria necessária a ocorrência de uma agressão atual ou iminente, bastando o risco de conflito armado, que autorizaria o abate nessas circunstâncias.
O projeto adotou, de forma inconsciente, a denominada stand-your-ground law, uma norma presente em alguns estados norte-americanos, que dispõe que, mesmo diante de ameaças potenciais, onde seria possível uma solução não letal, pode o indivíduo utilizar-se de força letal.
Essas disposições legais foram apelidadas por seus críticos de shoot first law, pois permite uma antecipação excessiva da legítima defesa a ponto de se permitir que seja utilizada força letal contra um indivíduo considerado meramente suspeito, mas que não representa uma ameaça atual ou iminente.
Aliás, é de se destacar que há um intenso debate sobre a validade desses normas quando da ocorrência da morte de suspeitos por agentes de segurança, supostamente em legítima defesa (antecipada), como aconteceu no caso do jovem negro Trayvon Martin, no estado da Flórida, em 2012.
No Brasil, se por um lado a adoção de uma stand-your-ground law parece necessária como forma de aperfeiçoar o instituto da legítima defesa, por outro lado, se mostra perigosa, pois certamente levará a um aumento considerável da letalidade policial, que já é uma das maiores do mundo.
Sendo assim, caso o projeto avance e seja de fato adotada a solução da “legítima defesa antecipada para agentes policiais”, essa deveria ser acompanhada de uma regulamentação mais clara das regras de engajamento — isto é, como, quando e por quais motivos os policiais poderiam se valer desse instituto —, bem como da adoção de políticas públicas que reduzam a criminalidade e os índices de letalidade policial.
Matheus Falivene é advogado criminalista e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Leia o artigo original publicado no site ConJur.
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