Matheus Falivene | JOTA – Crimes culturalmente condicionados
Um dos temas mais debatidos e controversos do Direito Penal na atualidade diz respeitos aos denominados “crimes culturalmente condicionados”, isto é, crimes que estão intimamente ligados às práticas de grupos minoritários, como imigrantes, por exemplo, mas que não encontram respaldo na população em geral, gerando, por isto, diversos questionamentos.
Em razão disso, no presente texto, sem esgotar o tema, trataremos sobre o conceito de crime culturalmente condicionado e suas aplicações práticas no Direito Penal.
Nos países em que existe uma determinada homogeneidade populacional e linguística, como os europeus, existe a crença de que é irracional vislumbrar o erro e a ignorância como fenômenos influenciados por fatores linguísticos, como a cultura, a religião etc.
Porém, os grandes fluxos migratórios ocorridos na segunda metade do Século XX e início do século XXI fizeram com que, no seio da Europa, surgissem diversos conflitos linguísticos de caráter jurídico, como, por exemplo, a questão das mutilações femininas, da utilização de véus islâmicos etc.
Esse fenômeno fez com que se desenvolvesse a chamada teoria dos crimes “culturalmente condicionados”, uma forma de o Direito Penal lidar com esses fenômenos migratórios.
A doutrina define o crime “culturalmente condicionado” como “aquele que faz referência a um comportamento realizado por um sujeito que pertença a um grupo social minoritário, que é considerado crime pelo ordenamento jurídico do grupo majoritário. Este mesmo comportamento, todavia, no interior do grupo cultural do sujeito é lícito, aceito como comportamento normal, ou aprovado, ou até mesmo, é encorajado ou imposto”.[1]
Apesar da noção teórica ter surgido no continente europeu, em países onde existem, historicamente, vários povos ou nações, como nos americanos, em que convivem povos de origem indígena, europeias, asiáticas etc., é mais perceptível a ocorrência do erro ou da ignorância culturalmente condicionados: o indivíduo desconhece o sentido da norma porque seu repertório linguístico não permite que ele a conheça, ou porque determinam que atue de modo diverso[2].
Um caso extremo e, normalmente citado como exemplo no estudo dos crimes culturalmente condicionados, especialmente nos países andinos, é o do índio isolado (não aculturado ou não civilizado, apesar da ambiguidade dos termos).
Em países como o Peru, várias populações indígenas ainda não contatadas (não civilizadas) têm comportamentos que seriam classificados como criminosos pela população civilizada, como o consumo de drogas ou, até mesmo, a violência manifestada através de homicídios perpetrados com extrema crueldade, como fica bem claro nos exemplos trazidos pela doutrina nacional[3] e estrangeira[4].
Porém, seria inadmissível que os silvícolas[5] fossem punidos pela prática dos homicídios quando, para eles, para sua linguagem, sua cultura, suas crenças, é legítimo matar aqueles que invadem suas terras para usurpar suas propriedades (seus recursos naturais, se é que podemos chamá-los assim).[6] Seria impossível exigir que os índios isolados conhecessem o sentido da norma penal, ou mesmo a existência da civilização, na verdade, o que se quer é o contrário: que mantenham a maior distância da civilização, dos seus costumes, de suas leis, preservando assim, a rica cultura indígena.
O enunciado da norma do art. 15 do Código Penal Peruano dispõe que aquele que em razão da sua cultura ou costumes comete um crime, sem poder compreender o caráter delituoso da sua conduta, está isento de pena, ou quando sua compreensão for diminuída, sua pena será atenuada[7].
Esse artigo nada mais é do que a manifestação do sentimento de heterogeneidade cultural daquele país, consagrado em sua exposição de motivos, em que se lê: “em reconhecimento a heterogeneidade cultural dos habitantes de nosso país”[8]. A doutrina peruana denomina essa causa excludente da punibilidade pela diversidade cultural de “erro de proibição culturalmente condicionado”[9].
O erro é a falsa apreensão da realidade, “quem erra vê mal”[10], mas no caso, o indígena que mata o invasor de suas terras não atua porque compreendeu falsamente a realidade, não atua porque enxergou mal, atua porque ignora, desconhece a realidade: não é possível que o índio não contatado conheça a existência da civilização que o cerca e, muito menos, que possua repertório linguístico suficiente para compreender os valores por ela pregados, que muitas vezes diferem frontalmente dos seus (a ponto de considerar alguns deles como crimes).
Hurtado Pozo, em um posicionamento radical, afirma que não é possível uma solução única para o problema e critica duramente o disposto no artigo 15 do Código Penal peruano, afirmando que deveria, quando não houvesse repercussão social fora da “tribo”, ser aplicado apenas o “direito”[11] consuetudinário indígena[12].
A questão é bastante complexa, e não pode ser discutida com grande profundidade neste trabalho, pois existem indagações menos radicais, mas igualmente relevantes, como a do estrangeiro que se encontra em local onde o sentido de proteção da norma penal difere, ainda que minimamente, do seu país de origem.[13]
Certamente que o estrangeiro, mesmo que guarde uma tábua de valores semelhante aos dos cidadãos do país que o acolhe, não possui repertório linguístico suficiente para compreender o sentido de todas as normas penais daquele local. Em razão disso, a doutrina[14] elaborou uma série de critérios que procuram mensurar o desconhecimento da norma, tal como a natureza “natural” ou “artificial” do crime[15], a heterogeneidade das culturas em conflito, tempo de permanência e a existência no país de origem de norma com conteúdo análogo.
O conflito entre os repertórios é muito menos evidente do que no caso dos indígenas, mas em razão da proliferação de normas penais incriminadoras não é difícil pensar no exemplo de um turista que desconheça que, no Brasil, é incriminado o porte de substância entorpecente para consumo pessoal, ou mesmo que é incriminado o nudismo, salvo se praticado em local especialmente destinado para tal fim. Aliás, neste último caso, em razão da percepção que se tem de nosso país (em razão do carnaval etc.), a determinação do turista não possa ser outra a não ser a de considerar que o nudismo é plenamente admitido.
Ante ao exposto, por meio dessa rápida exposição, pretendeu-se debater o tema dos crimes culturalmente condicionado, tópico que deve fazer parte do repertório daqueles que pesquisam e que militam na área do Direito Penal.
[1] BASILE, Fabio. Immigrazione e reati culturalmente motivati: il Diritto Penale nella società multiculturali. Roma: Giuffrè, 2010.p. 42. (tradução livre).
[2] Como afirma Laurence Chunga Hidalgo, “em uma sociedade – como a do Peru – onde coexistem distintas culturas, com seus respectivos sistemas de valores, é possível, fática e teoricamente, admitir que existam indivíduos que, não podendo conhecer a ilicitude de sua ação, não vislumbram a situação, porque determinado modo de agir é normal e permitido no interior de seu grupo social”. (La situación jurídica del “culturalmente condicionado” frente al Derecho Penal. Disponível em: www.unifr.ch/derechopenal. Acesso em 7 de abril de 2019. p. 6).
[3] João Bernardino Gonzaga anota que seria comum o incesto nas tribos que habitavam o Brasil, prática que era absolutamente abominada pelos colonizadores. (GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal indígena. À época do descobrimento do Brasil. São Paulo: Max Limonad, s/d.p. 147 e ss.).
[4] “A administração Técnica Florestal e de Fauna Silvestre Tambopata do INRENA informou sobre a morte de duas pessoas, ao que parece madeireiros ilegais, que foram brutalmente assassinados pelos nativos da Zona de Reserva dos No Contactados, localizada no rio Las Piedras, uma zona contígua ao Parque Nacional de Manu, no departamento de Madre de Dios. Segundo informações de uma rádio um grupo de madeireiros ilegais fora atacado por nativos isolados quando transportavam madeira em uma estrada na Zona de Reserva (…). As vítimas foram degoladas e descaracterizadas pelos indígenas que intentavam defender suas terras dos madeireiros (…). Como é sabido, existem grupos de nativos que não têm contato com a cultura ocidental ou seus níveis de interação são mínimos, nestes casos, o Governo do Peru, criou zona de reserva para assegurar a sobrevivência destas populações.” (MEINI, Iván. Inimputabilidad penal por diversidad cultural sobre el artículo 15 del Código Penal. In: Derecho PUC. Lima: Fundo Editorial, 2007. p. 17).
[5] O termo “silvícola” é utilizado apenas em seu sentido léxico, como “quem ou que nasce ou vive na selva” (HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1745); e não com o sentido de “selvagem”, expressão “que não tem respaldo científico, fruto da ideologia predominante no ‘Século das Luzes’, em que a denominação ‘bom selvagem’ e ‘mal selvagem’ correspondem aos distintos estereótipos que a civilização europeia impôs aos americanos. (…). ‘Bom selvagem’ é o dócil, o receptivo ao que se pretende impor; ao contrário, ‘mal selvagem’ é o rebelde, o cruel, o pagão”. (VITOR, Enrique García. Culturas diversas y sistema penal. Disponível em: www.unifr.ch/derechopenal. Acesso em 7 de abril de 2019. p. 12).
[6] Nesse sentido é a lição de Janaina Conceição Paschoal, para quem, “deve-se avaliar, no caso concreto, se o índio tinha consciência da ilicitude de seu ato, considerando-se os valores inerentes a sua própria cultura”. (PASCHOAL, Janaina Conceição. O índio, a inimputabilidade e o preconceito. In: VILLARES, Luiz Fernando (coord.). Direito Penal e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2010. p. 90.
[7] Art. 15. Aquele que por sua cultura ou costumes comete um crime punível sem poder compreender o caráter delituoso de seu ato ou determinar-se de acordo com essa compreensão, será eximido de responsabilidade. Quando por igual razão, essa possibilidade for diminuída, atenuar-se-á a pena. (PERU, República do. Código Penal).
[8] MEINI, Iván. Inimputabilidad penal por diversidad cultural sobre el artículo 15 del Código Penal. In: Derecho PUC. Lima: Fundo Editorial, 2007. p. 22.
[9] Vide as ponderações de: MEINI, Iván. Inimputabilidad penal por diversidad cultural sobre el artículo 15 del Código Penal. In: Derecho PUC. Lima: Fundo Editorial, 2007; e POZO, José Hurtado. Art. 15 del Código penal peruano: ¿Incapacidad de culpabilidad por razones culturales o error de compresión culturalmente condicionado? Disponível em: www.unifr.ch/derechopenal. Acesso em 7 de abril de 2019.
[10] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal v. 1. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 399.
[11] Segundo John Glissen, o Direito dos “povos primitivos”, no qual se incluem os índios, possuem as seguintes características: a) não escritos; b) numerosos; c) diversificados; d) impregnados pela religião; e) decorrentes do nascimento. (GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. António Manuel Hespanha e Manuel Macaísta Malheiros. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 35 e ss.).
[12] “Para finalizar este trabalho, sublinharemos, uma vez mais, que olhando o problema em uma perspectiva ampla, temos que admitir que, pela sua complexidade, requer uma pluralidade de respostas para considerar seus diferentes aspectos. Respostas que devem ir desde a não intervenção quando o fato penalmente relevante ocorre no interior de uma sociedade isolada e não tem repercussões no resto da sociedade, até a aplicação das eximentes e atenuantes previstas na lei penal, levando-se em conta os fatores culturais que condicionaram o comportamento do agente. Neste caso, deve ter um papel relevante a categoria de erro sobre o caráter ilícito do fato. De modo que é supérfluo prever uma regra tal como prevê o artigo 15. (…). Nesta perspectiva, toda a elaboração, interpretação e aplicação de normas legais deve ser feita respeitando-se a pluralidade e igualdade das diferentes culturas, única maneira de fazer com que se prevaleça a dignidade das pessoas e os direitos humanos.” (POZO, José Hurtado. Art. 15 del Código penal peruano: ¿Incapacidad de culpabilidad por razones culturales o error de compresión culturalmente condicionado? Disponível em: www.unifr.ch/derechopenal. Acesso em 7 de abril de 2019. p. 12).
[13] “Exemplo: o holandês que foi preso no aeroporto de Guarulhos portando maconha para uso próprio, na crença de que o fato fosse lícito (também no Brasil), achava-se em erro de proibição. Quem pratica a conduta (de boa-fé) supondo ser lícita, quando, na verdade, é ilícita, atua em erro de proibição”. (GOMES, Luiz Flávio. MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito penal – vol. 2: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 590).
[14] BASILE, Fabio. Immigrazione e reati culturalmente motivati: il Diritto Penale nella società multiculturali. Roma: Giuffrè, 2010. p. 391 e ss.
[15] Nesse contexto, cabe referência ao trabalho de Augusto Silva Dias: “Delicta in se” e “delicta mere prohibita”: uma análise das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
Texto original publicado no site JOTA
Crédito da imagem: Pixabay
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