COMENTÁRIOS AO CRIME DE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA (ART. 24-A DA LEI MARIA DA PENHA)
Artigo originalmente publicado no JusBrasil.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei n.º 11.340/06, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, teve como finalidade criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Para tanto, dentre os diversos instrumentos que criou, estão as denominada medidas protetivas de urgência, medidas de natureza cautelar, que visam assegurar a efetividade da proteção da mulher em situação de violência doméstica.
Porém, ocorre que essas medidas protetivas eram reiteradamente descumpridas pelos seus destinatários sem que houvesse uma punição criminal para tal descumprimento.
Isso se dava porque o entendimento jurisprudencial dominante era no sentido de que o descumprimento de medida protetiva de urgência não configurava crime, nem mesmo desobediência (art. 330 do CP).
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica , afastando com isso a incidência do referido crime ao descumprimento da medida.
Em razão disso, foi promulgada a Lei n.º 13.641/18, que tem como objetivo introduzir um novo crime no ordenamento, que tipifica a conduta daquele que descumpre medida protetiva de urgência, nos seguintes termos:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
Feitas essas considerações iniciais, comentaremos os principais elementos do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência (art. 24-A da Lei n.º 11.340/06), iniciando pelo debate sobre o bem jurídico tutelado.
2. BEM JURÍDICO PROTEGIDO
O bem jurídico tutelado pelo crime é o normal funcionamento da Administração da Justiça, com o escopo especial de assegurar o prestígio e a garantia da potestade estatal, representada pelo Poder Judiciário, que é violada pelo descumprimento da medida protetiva judicialmente imposta.
Secundariamente, é a liberdade pessoal e a segurança da vítima, violadas pelo descumprimento da medida.
3. SUJEITOS DO CRIME
Trata-se de crime próprio, na medida em que o sujeito ativo somente pode ser o indivíduo que tem sua liberdade restrita pelas medidas protetivas disciplinadas pela Lei Maria da Penha.
Cabe ressaltar, nesse ponto, que o sujeito ativo do crime pode ser tanto homem quanto mulher, na medida em que indivíduos de ambos os sexos podem ser agressores e, consequentemente, se sujeitarem a medidas protetivas disciplinadas pela Lei Maria da Penha.
Sendo o crime próprio, o terceiro (não sujeito à medida protetiva) que de qualquer forma concorra para a sua prática (denominado de extraneus nessa espécie de crime), poderá responder apenas como partícipe.
O sujeito passivo direto (primário) é o Estado, que teve uma ordem judicial administrativa ou judicial desrespeitada. O sujeito passivo indireto (secundário) é a própria vítima de violência doméstica, que na hipótese, somente pode ser mulher.
Conforme a doutrina, o transexual que fizer a cirurgia de transgenitalização e passar a ser considerado mulher em seu registro civil poderá também ser sujeito passivo do crime.
4. TIPO OBJETIVO
O verbo-núcleo do tipo é descumprir, que significa deixar de cumprir, transgredir, não atender. Nesse sentido, a conduta do indivíduo pode se constituir numa ação ou omissão que descumpra o comando contido em uma medida protetiva, tratando-se de uma de forma de desobediência qualificada.
O descumprimento há de recair sobre decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência. As medidas protetivas de urgência são medidas de natureza cautelar, que visam assegurar a efetividade da proteção da mulher em situação de violência doméstica.
As medidas protetivas dividem-se em duas espécies: as medidas protetivas que proíbem o agressor de praticar determinadas condutas (art. 22 da Lei) e as medidas protetivas destinadas ao amparo da mulher (arts. 23 e 24 da Lei).
Segundo nosso entendimento, o crime somente se aplica às medidas protetivas elencadas no art. 22 da Lei, sejam elas de natureza penal, e consequentemente decretadas por juiz penal, como restrição ao porte de arma, proibição de contato e distância mínima, ou de natureza cível, decretadas por um juiz cível, como o afastamento do lar ou a prestação de alimentos provisórios.
Além disso, a medida deve ter sido decretada judicialmente, isto é, pela autoridade judiciária competente, seja criminal ou cível.
Dessa forma, estão excluídas do âmbito de incidência da norma as medidas protetivas de urgência de afastamento do lar decretadas por policiais civis, militares ou por delegado de polícia (art. 12-C da Lei).
No mais, exige-se conhecimento direto (por intimação, notificação ou outra forma inequívoca) por parte do indivíduo que sofre a restrição de liberdade por meio da medida protetiva, sem ser por interposta pessoa, a fim de não existir punição por mero “erro de comunicação”, que seria uma indevida responsabilidade penal objetiva.
Por fim, como a Lei n.º 13.641/18 foi promulgada e publicada em 3 de abril de 2018, somente podem ser consideradas como crime os descumprimentos de medida protetiva de urgência praticados a partir desta data, em decorrência do princípio da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º do CP).
5. TIPO SUBJETIVO
É o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de descumprir medida protetiva.
O sujeito ativo deve ter consciência de que descumpre medida protetiva, não respondendo pelo crime em situações em que ele desconhece a existência da medida protetiva.
No mais, o crime não admite modalidade culposa. O agente deve, de fato, conhecer a existência de uma medida protetiva, saber que sua conduta descumpre tal determinação e assim o querer, de forma que situações em que o descumprimento se dá por negligência, imprudência, imperícia ou por mero acaso não podem ser consideradas criminosas.
6. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O crime é formal, consumando-se no momento em que o sujeito ativo realiza a conduta proibida (forma comissiva) ou deixa de realizar a conduta determinada na decisão judicial ou administrativa que deferiu a medida protetiva (forma omissiva).
A tentativa é admissível na modalidade comissiva.
7. EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Questão de extrema relevância diz respeito à aplicação das excludentes da ilicitude ao crime de descumprimento de medida protetiva, especialmente no que diz respeito ao exercício regular de direito e ao consentimento do ofendido.
O exercício regular de direito justifica as comunicações do cidadão comum que atua conforme uma norma que lhe outorga um direito que é por ele exercido de forma regular. Se o indivíduo está exercendo um direito, não pode este exercício ser considerado crime, ainda que formalmente se subsuma a um tipo penal.
O instituto exige a presença de dois requisitos: a existência de um direito, legalmente previsto ou não, que permita determinada conduta por parte do cidadão , e o exercício regular desse direito, que deve ser exercido dentro dos seus limites pragmático-semânticos.
No caso do crime em comento, hipóteses em que o(a) agressor(a) deve contato com a vítima em decorrência da existência de um direito de visita dos filhos ou, com ainda mais razão, de guarda compartilhada, não podem ser considerados ilícitos, não havendo que se falar na ocorrência do crime.
Já o consentimento do ofendido (ou, no caso, da ofendida) é a concordância do indivíduo protegido pela norma com a prática de uma conduta que violaria essa norma.
Nessa hipótese, o indivíduo concorda que um terceiro, violando uma norma que o protege, cause um dano, podendo ser considerado uma causa de não incidência em razão da ausência de tipicidade, quando consentimento faz parte do tipo, ou da ilicitude, quando o consentimento não faz parte do enunciado legislativo penal.
8. PENA E AÇÃO PENAL
A pena cominada é de 3 (três) meses a 2 (dois) anos de reclusão.
A ação penal é pública incondicionada, não dependendo de representação da vítima.
9. IRRELEVÂNCIA DA NATUREZA CIVIL OU PENAL DA DECISÃO JUDICIAL QUE CONCEDEU A MEDIDA PROTETIVA
As medidas protetivas elencadas no art. 22 da Lei podem, em alguns casos, ser decretadas por juiz criminal e, em outros, por juiz cível. Dessa forma, seria irrelevante para a ocorrência do crime que essa decisão que concedeu a medida protetiva fosse proferida por juiz criminal ou cível.
Porém, por zelo, o § 1º dispõe que “a configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas”.
10. FIANÇA
O § 2º dispõe que, na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
O dispositivo visa dificultar a concessão de fiança aos indivíduos presos pelo crime de descumprimento de medida protetiva, fazendo com que eles sejam conduzidos à audiência de custódia, para apenas então ser concedida a liberdade provisória com o pagamento de fiança.
11. APLICAÇÕES DE OUTRAS SANÇÕES CABÍVEIS
O § 3º dispõe que o disposto no art. 24-A não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis. Dessa forma, deixa-se claro que a aplicação da sanção penal não exclui a aplicação de sanções de outra natureza, como administrativa e cível.
Porém, a nosso ver, a aplicação de outras sanções de natureza administrativa ou cível constituí inaceitável bis in idem, na medida em que o indivíduo é punido duas vezes (uma no âmbito penal e outra no administrativo/civil) com sanções qualitativamente similares.
12. APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS DESPENALIZADORES DA LEI N.º 9.099/95
Debate interessante diz respeito à aplicação dos institutos despenalizados previstos na Lei n.º 9.099/95 ao crime, especialmente no que diz respeito à transação penal e à suspensão condicional do processo.
O art. 41 da Lei 11.340/06 veda expressamente a aplicação dos institutos previstos na Lei n.º 9.099/95, como a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo, aos crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A finalidade da norma, de evidente natureza político-criminal, é evitar que os crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher sejam considerados de “menor potencial ofensivo”, permitindo que o autor seja beneficiado pelos institutos despenalizadores previstos na Lei n.º 9.099/95.
Porém, a grande questão que se coloca é se essa vedação se estenderia ou não ao crime de violação de medida protetiva.
A nosso ver, o crime de violação de medida protetiva não estaria sujeito aos rigores do disposto no art. 41 da Lei n.º 11.340/06, aplicando-se a ele os institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo.
Para este entendimento, não há como se considerar o crime de descumprimento de medida protetiva como uma forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, mas sim como uma forma de desobediência qualificada, que tem como bem jurídico é a Administração da Justiça.
Contudo, a jurisprudência certamente se posicionará em sentido contrário, afirmando que ao crime em comento não se pode aplicar os preceitos da Lei n.º 9.099/95.
Isso porque, nos termos da súmula 536/STJ, “a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”. Como o crime em comento se submete a tal rito, não poderá se aplicar a ele tais benefícios.
Matheus Herren Falivene de Sousa
Advogado criminalista, sócio do escritório Falivene Advogados. Mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
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