Matheus Falivene | JusBrasil – Comentário ao art. 218-C do Código Penal
Crimes de divulgação de cena de estupro, divulgação de cena de apologia ao estupro e divulgação de cena de sexo ou pornografia
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É recorrente na mídia e nas redes sociais a divulgação de cenas de estupro, gravadas pelos agressores ou por terceiros, assim como a divulgação de vídeos íntimos, fotos e material pornográfico em geral, sem autorização da vítima.
Em razão disso, a Lei n. 13.718/18 introduziu no Código Penal o art. 218-C, que dispõe sobre os crimes de “divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável”, “divulgação de cena com apologia ao estupro” e “divulgação de cena de sexo ou de pornografia”, por meio da seguinte redação:
“Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática –, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena
§ 1º. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
Exclusão da ilicitude
§ 2º. Não há crime quanto o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.”
Em razão da complexidade e da extensão do tipo, apesar da existência de muitos pontos em comum, é possível se constatar a existência de três crimes distintos: o crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, o crime de divulgação de cena com apologia ao estupro e o crime de divulgação de cena de sexo ou de pornografia.
O bem jurídico tutelado pelos crimes é a dignidade sexual da vítima, que é violada pela divulgação das cenas do estupro da qual foi vítima ou quando tem vídeos ou fotos íntimas divulgadas.
2. SUJEITOS DO CRIME
São crimes comuns, na medida em que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo ou sujeito passivo dos crimes.
A vítima, em qualquer caso, deve ser maior de 18 (dezoito) anos, na medida em que, caso seja menor de idade, ocorrerá o crime dos arts. 241 e 241-A do ECA.
No caso do crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável não é necessário que o sujeito ativo seja pessoa que participa ativamente do crime de estupro.
Da mesma forma, no crime de divulgação de cena de sexo ou pornografia, não é necessário que o sujeito ativo seja pessoa que mantenha ou tenha mantido relação íntima com a vítima, podendo ser qualquer pessoa.
Aliás, caso o crime seja praticado por pessoa que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima, a pena será aumentada, nos termos do § 1º. Nessa hipótese, é exigida uma especial qualidade do agente.
3. TIPO OBJETIVO
Os verbos-núcleo do tipo, comuns aos crimes, são oferecer (apresentar para aceitação ou rejeição, proporcionar), trocar (dar e receber ao mesmo tempo, permutar), disponibilizar (ter, oferecer ou colocar à disposição), transmitir (fazer passar de um local para outro ou de uma propriedade para outra), vender (alienar mediante pagamento em dinheiro) ou expor à venda, distribuir (dividir entre duas ou mais pessoas), publicar (levar ao conhecimento do pública) ou divulgar (tornar público).
A divulgação, nos dois casos, pode ocorrer por qualquer meio, inclusive por meio de comunicação de massa, sistema de informática ou telemática, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual
Os meios de comunicação de massa, que são veiculações mensagens a um grande número de pessoas simultaneamente, como no caso das mídias tradicionais (v.g., emissoras de televisão, jornais, revistas, periódicos, magazines, etc.).
Sistema de informático é conjunto organizado de sistemas (software) e equipamentos (hardware), baseados em circuitos eletrônicos ou inteligência artificial, capaz de manipular, transformar e transmitir dados, seja pela rede mundial de computadores ou qualquer outro meio.
Sistema telemático é qualquer meio que realize a transmissão de informações por meio do uso combinado entre sistema de computador e sistemas de telecomunicação (telefone, rede móvel, Whatsapp, Telegram etc.).
Fotografia é a imagem estática obtida por meio de uma máquina fotográfica, seja digital ou analógica; vídeo, por sua vez, é o conjunto ordenado e sequencial de imagens; e outro registro audiovisual é qualquer outra forma de se registrar imagens e sons, sequenciais ou não, como, por exemplo, os gifs e os slides.
Além disso, a divulgação pode ocorrer por qualquer outro meio, físico ou digital.
Questão tormentosa diz respeito à divulgação de áudio com conteúdo sexual. Entendemos que a divulgação de áudio (sem qualquer imagem) não configura o crime em comento já que o tipo exige que o registro, ao menos, seja visual ou audiovisual (isto é, que contenha apenas imagens ou imagens e sons), não se aplicando apenas ao registro de áudio.
Feitas essas considerações gerais, comuns aos três crimes, passaremos à análise dos elementos característicos de cada um deles.
a) Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável: no crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável (art. 218-C, primeira parte, do CP), a divulgação se dá sobre cena de estupro ou cena de estupro de vulnerável.
Cena de estupro é aquela em que, por qualquer meio visual ou audiovisual, representa o constrangimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que se pratique qualquer outro ato libidinoso.
Por sua vez, cena de estupro de vulnerável é aquela em que, por qualquer meio visual ou audiovisual, representa a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, enferma ou com deficiência mental.
Caso a cena diga respeito à pessoa menor 14 (catorze), restará configurado o art. 241 ou do art. 241-A do ECA, que possui pena mais grave.
Por fim, caso a cena represente um crime de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP), assédio sexual (art. 216-A do CP) ou qualquer outro crime contra à dignidade sexual que não seja estupro ou estupro de vulnerável, o fato será impunível, podendo ser punido eventualmente como crime informático (previsto na “Lei Carolina Dieckmann”), caso presentes os requisitos
b) Divulgação de cena com apologia ao estupro: o crime de divulgação de cena com apologia ao estupro pune aquele que de qualquer forma, faz apologia induz, incentiva, a prática do crime de estupro.
Não é necessário que, para que se realize a apologia ou o induzimento, exista cena de sexo ou pornográfica, bastando a argumentação nesse sentido (v.g., vídeo ou artigo em alguém defenda a prática de estupro, como ocorreu com famoso youtuber).
Também não é necessário que a apologia se refira a fato já ocorrido, podendo se configurar a apologia mesmo com relação a fato em tese.
Questão discutível diz respeito ao “estupro encenado”, isto é, aqueles vídeos em que deliberadamente é encenada uma cena de estupro como forma de satisfazer a lascívia daqueles que assistem. A nosso ver, tal situação configura o crime de divulgação de cena com apologia ao estupro.
c) Divulgação de cena de sexo ou de pornografia: por fim, o crime de divulgação de cena de cena de sexo ou pornografia pune aquele que divulga cena de sexo (vídeo ou fotografia com a prática de coito ou qualquer outra forma de conjunção carnal), nudez (estado da pessoa que tem uma parte do corpo nua) e pornografia (figura, fotografia ou filme cujo objetivo é provocar erotismo obsceno ou apenas causar excitação sexual, sem nenhum valor artístico), tudo sem o consentimento da vítima.
Não é necessário que haja o efetivo dissenso da vítima, bastando, para configuração do crime, bastando que não existe o consentimento da vítima, que deve ser expresso, ainda que não escrito.
É de se notar que a divulgação de vídeos e imagens “profissionais”, oriundos de produtoras de vídeo ou de revistas que contenha cena de sexo ou de pornografia sem a autorização das vítimas, não configura o crime em comento, mas sim crime contra a propriedade imaterial.
4. TIPO SUBJETIVO
Os crimes são dolosos, exigindo que o agente tenha conhecimento que compartilha ou divulga vídeo, fotografia ou qualquer outro conteúdo que contenha cena de estupro, que incentive tal prática ou sem o consentimento da vítima.
Para que se configure os crimes, o agente tem de ter certeza de que se trata de cena de estupro ou de que não há autorização da vítima, não se admitindo, a nosso ver, o dolo eventual.
Dessa forma, não está proibida a divulgação de toda forma de conteúdo pornográfico, na medida em que, nos casos de vídeos produzidos de forma comercial (como por produtoras de conteúdo adulto ou revistas do gênero), o consentimento é presumido e até mesmo contratual, instrumento do qual o agente divulgador não tem acesso.
É de se notar que, no caso do aumento de pena com o fim de vingança ou humilhação, existe o elemento subjetivo do tipo (dolo específico), consistente justamente na finalidade de se vingar da vítima ou de lhe causar humilhação.
5. AUMENTO DE PENA
O § 1º prevê que a pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
A primeira hipótese diz respeito à divulgação por agente que mantém ou manteve relação íntima de afeto com a vítima, isto é, um relacionamento amoroso, afetivo ou íntimo, ainda que não tenha sido praticado qualquer ato sexual anterior
Dessa forma, o aumento de pena pode ser aplicado a cônjuges, companheiros (as), namorados (as) e amantes ou qualquer outra pessoa que mantenha relação íntima de afeto, independentemente da denominação ou condição.
A segunda hipótese, por sua vez, diz respeito ao denominada revenge porn, a pornografia por vingança, e à divulgação com finalidade de humilhação.
A pornografia por vingança (revenge porn) consiste na divulgação, por um dos parceiros da relação sexual ou por terceiro, de imagem ou vídeo com natureza sexual (sex tapes, nudes, etc.), com a intenção de se vingar do outro indivíduo por ciúmes, rejeição, etc.
Nessa hipótese, é necessário a demonstração do elemento subjetivo do tipo (dolo específico), consistente no fim específico de vingança. Qualquer outra finalidade da divulgação, acarretará a não incidência da causa de aumento de pena.
Já a pornografia com finalidade de humilhação consiste na divulgação, por qualquer pessoa, de imagem ou vídeo com natureza sexual com a finalidade específico de humilhar a vítima.
Nessa hipótese, também é necessário a demonstração do elemento subjetivo do tipo (dolo específico), consistente no fim específico de humilhação da vítima. Qualquer outra finalidade da divulgação, acarretará a não incidência da causa de aumento de pena.
6. EXCLUSÃO DA ILICITUDE
O § 2º prevê expressamente que não há crime quanto o agente pratica as condutas descritas no caput do artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.
Dessa forma, o próprio tipo prevê uma causa de exclusão da ilicitude aplicável às hipóteses em que a cena de estupro ou de natureza pornográfica é divulgada em publicação de natureza jornalística (publicação de natureza informativa nas mídias tradicionais ou sociais), científica (relativos ao estudo metodológico de determinado ramo do conhecimento humano), cultural (relativo ao desenvolvimento artístico e humano de determinada sociedade) ou acadêmica (relativo às atividades educacionais e acadêmicas, sejam de ensino ou pesquisa, como aulas, palestras, etc.).
Porém, para que haja a exclusão é necessário que a vítima seja maior de 18 (dezoito) anos, autorize expressamente a publicação e que se adote recurso que dificulte a sua identificação.
Dessa forma, primeiro, é necessário que a vítima seja maior de 18 (dezoito) anos, pois, caso seja menor de idade, restarão configurados os crimes relativos à divulgação de pornografia infantil, tipificados pelos arts. 241 e 241-A do ECA.
Além disso, é necessário que a vítima autorize expressamente a divulgação. Tal autorização deve ser expressa, não sendo admitida a autorização tácita; porém, não é necessário que seja por escrito, podendo ser na forma verbal.
Questão interessante que se coloca nesse ponto seria a divulgação de material pornografia de origem conhecida, como por exemplo, produtoras de vídeo, revistas de conteúdo adulto, etc.
Nesses casos, apesar do agente divulgador não possuir a autorização expressa para divulgação, entendemos que não estará configurado o crime na medida em que não há violação à dignidade sexual das “vítimas”, mas tão-somente crime contra à propriedade imaterial.
Por fim, é necessário que o agente adote recursos que dificultem a identificação da vítima. Assim, não é necessário que torne impossível a identificação, mas apenas que adote recursos que dificultem a identificação, como omissão de seu nome, de seu resto, de marcas e sinais característicos (tatuagens, cicatrizes, etc.).
7. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
Os crimes são formais, consumando-se no momento em que é realizado um dos verbos-núcleo do tipo, independentemente da ocorrência de qualquer resultado lesivo (v.g., acesso por um terceiro de um material pornográfico disponibilizado em determinada página da inernet).
Algumas modalidades (expor à venda, disponibilizar e divulgar) são crimes permanentes, na medida em que a execução se protrai no tempo (v.g., quando o agente disponibiliza um conteúdo pornográfico indevido em seu site, a execução do crime perdura enquanto o material estiver disponível para acesso do público em geral).
A tentativa é admissível, ocorrendo quando o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, não consegue consumar o crime.
Na modalidade “oferecer”, por outro lado, parece-nos ser um crime de mera conduta, na medida em que o mero o oferecimento já perfaz a ocorrência do crime, não havendo nem mesmo separação lógica entre a conduta e o resultado. Nessa hipótese, não seria admissível a tentativa.
8. PENA E AÇÃO PENAL
A pena é de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão, se o fato não constitui crime mais grave.
A ação penal é pública incondicionada. Na modalidade do caput, é admissível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95).
9. CONFLITO APARENTE DE NORMAS
Na hipótese do crime de divulgação de cena de estupro ou de estupro de vulnerável, caso o agente participe efetivamente do ato sexual sem consentimento, responderá pelo crime de estupro (art. 213 do CP) ou pelo crime de estupro de vulnerável (art. 271-A do CP), em razão do caráter subsidiário do presente crime.
Nessa hipótese, entendemos que haveria concurso material entre o estupro de vulnerável e a sua divulgação, na medida em que os crimes tratam de objetos jurídicos diversos.
Caso o fato tenha sido praticado antes da promulgação da Lei n. 13.718/18, que introduziu o art. 218-C do Código Penal, o agente que divulga foto íntima ou material pornográfico responderá pelo crime de difamação (art. 139 do CP).
Caso ocorra a divulgação de cena de natureza pornográfica com menor de 18 (dezoito) anos, que não configure a prática do crime de estupro de vulnerável (isto é, que não haja a prática de qualquer ato sexual), estaremos diante dos crimes relativos à pornografia infantil disciplinados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 241 e 241-A).
Caso a divulgação do material pornográfico ou da cena de estupro se dê com a finalidade de obter indevida vantagem econômica, estará configurado o crime de extorsão (art. 158 do CP).
Por fim, caos a divulgação seja de material de empresas que publicam conteúdo adulto, como produtoras de vídeo e revistas, em decorrência do princípio da especialidade, a divulgação sem autorização configurará crime contra à propriedade imaterial.
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